O algodão e a seringa
Você já percebeu que algumas coisas parecem sumir e do nada aparecem naquele mesmo lugar que você já havia procurado ou simplesmente parecem mudar de lugar? Isso acontece muito com óculos, chaves e controles remotos, e com meias, nem se fala!
O que pouca gente sabe é que no mundo dos objetos inanimados há um encanto quando não há humanos por perto e nessas horas eles podem se locomover e expor suas opiniões, já dizia nosso ilustríssimo Machado de Assis. Esse relato a seguir foi uma amiga enfermeira que me contou quando apareceu de surpresa para tomar mais uma xícara de café e ouviu o diálogo acalorado entre as partes.
No ambulatório do posto de saúde havia uma rixa antiga que a tempos era conhecida entre os instrumentos cirúrgicos que havia entre o pacote de algodão e a seringa. Quando todos os funcionários iam embora no turno da noite começavam os debates que eram esperados pelos expectadores que mostravam suas preferências através de gritos de incentivo ou de palmas.
Invariavelmente o algodão tentava mostrar sua superioridade em relação à seringa que quase nunca se mostrava afetada por aquela empáfia, mas naquela noite ele resolveu provocar de forma mais irritante a seringa que era seu desafeto, e por pouco não foram às vias de fato. Quem de longe visse aquele pacote tão fofinho de algodão não imaginaria quanto rudeza havia naquele ser:
- Sou tirado das lavouras, apanhado diretamente da natureza, conhecido e utilizado desde os primórdios da humanidade quando começaram a fiar para fazerem roupas. Sou biodegradável, logo sou absorvido pelo ambiente, não poluo a natureza levando centenas de anos para desaparecer. Não infecto aquela pessoa desavisada que é picada por uma agulha contaminada. Eu sou conhecido pelo princípio da limpeza. Sou eu que higienizo a pele, seja para retirar os resquícios da maquiagem ou para preparar para o recebimento do medicamento.
Os partidários do algodão sempre o cumprimentavam por tamanha oratória, mas os que torciam pela seringa já estavam acostumados com aquela calma fleumática e sabiam que ela observava tudo para contra-atacar no final. E o algodão continuava seu discurso:
- A nossa amiga seringa só causa dor por onde passa. Quantas pessoas tem aiquimofobia, um medo excessivo de agulhas? Tem gente que até desmaia! Há drogas injetáveis que são utilizadas através dela, meus senhores! Há quem utilize de seringa para obterem resultados mais rápidos através de esteroides, mas nós sabemos que isto faz muito mal para a saúde, não é mesmo?
Afiada como sempre, sem mexer um músculo sequer, a seringa que até então estava deitada, ergue-se e responde calmamente:
- Data venia. O amigo algodão argumentou sobre muitos aspectos que em parte são verdadeiros, mas gostaria de dizer que o douto colega esquece-se de alguns fatores. É verdade que não sou um objeto natural, que sou invenção humana, mas desde quando diremos que algo seja bom ou ruim se consideramos apenas a sua origem?
Ouve-se um burburinho entre as partes da plateia, alguns de aprovação e outros de negação, e a seringa continua afiada:
- Se há pessoas que tem medo de mim ou que me utilizam de maneira escusa, não tenho culpa nisso. Vejam minha prima faca: Com ela você passa manteiga no pão. Ela tem culpa se alguém a utiliza para tirar a vida de uma pessoa? Não! Não há culpa no instrumento, mas sim é o sujeito que escolhe a utilidade que queira dar a ele! Pergunte ao diabético que faz uso de insulina se o mesmo não precisa de mim para viver! E às pessoas com urgência de medicamentos injetáveis?!
A conversa se estende até de manhã quando o posto de saúde reabre suas portas para atendimento ao público e logo uma técnica retira um chumaço de algodão do pacote, encharca-o com álcool e aplica uma injeção em um paciente que parecia não ter tomado banho a se dizer o estado que ficara o algodão até então imaculado. Após utilizar os objetos descarta-os na caixa de produtos hospitalares e segue em seus afazeres, e lá no escuro da embalagem, a seringa ainda fala para o algodão:
- Estás vendo meu amigo? A vida é muito breve. Num instante estamos discutindo e no outro já estamos trabalhando em conjunto. Agora pergunto: Para quê tanto orgulho se no fim vamos para o mesmo lugar, terminamos na mesma caixinha, não importa quem você é ou ache quem seja?
O algodão que agora estava sujo e usado não disse nada, mas pelo fungado que deu pareceu concordar com a colega.
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MIBAAS
Fortaleza
03.03.23
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